Estou às voltas com uma maçã que repousa sóbria e segura sobre a mesa. A mesa, madeira morta, resignada, de poucos pecados já expiados na ponta de um cinzel hoje perdido num canto qualquer de uma marcenaria escura e hermética feito o fundo da alma da gente. A toalha, o abrigo lacônico e preciso por sobre a madeira acarvalhada, a bandeira certa sobre o caixão, o véu sobre o rosto da viúva, a mortalha perfeita no contorno da mesa morta. A faca, despida de perdões, limpa das sobras de comida e dos restos de uma piedade há muito esquecida desta câmara. Uma moringa de água ou vinho em contornos sensuais apela para o golpe de mão que lhe faria beijar a taça. Esta, transparência absoluta, virgem sublime, fita-me com o ar dos que ignoram os ignominiosos, e se enche apenas com o ar da superioridade daqueles que possuem a nobreza dos moldados em cristais, despreza-me. O pedaço de pão, as uvas, o pêssego, o queijo ocre, todos se deitam à mesa. Suspenso, o tempo não rola, nem mesmo um suspiro em segundos ele toma. Uma câmara barroca, uma paisagem morta - como morto deveriam estar as épocas estanques dos livros consagrados da historiografia; mortos os períodos que se fazem de fotogramas do filme de uma história aparvalhada com claros sinais de demência; o fio que já não mais passa pela roca de Cloto, tampouco segue a medida de Lachesis ou se rompe à tesoura de Átropos; e vivo somente a vida em um ato de mudança, a desobediência a que se nos obriga e a metamorfose do indivíduo que luta: torna-se um rato – pouca luz. Fraca, uma vela em seu fado, seguindo o fastio de seu destino, brilha; escorre-lhe um pranto céreo que lhe deforma o corpo, lhe tolhe em altivez, mas lhe assegura a base. À mesa, sombras, um leve ronronar de luz mortiça da vela que chora e a maçã que me enlaça os olhos e me seduz em pecados. Eu às voltas com os pecados e vícios.
Ora vivi em pecados e perdido em meio a pequenos vícios. Longo tempo. Ainda hoje, ao me levantar, ou me lavar, em minhas distrações, ou mesmo em minhas obrigações, faço apenas reforçar meus pequenos vícios, pequenos prazeres execrados pelo nome de neuroses. A maçã faz suscitar no mais íntimo de mim essas ditas neuroses, ditosas, esses vícios feito grãos de sal que temperam minha vida. São eles, à visão da maçã, que aos poucos se espalham pelo meu corpo, me enlevam em pequenas tremuras, dilatam minhas pupilas e me rejuvenescem os desejos, me faz palpitar o coração, e acendem os pelos de meu braço ao abrirem caminho no mais exterior de minha pele. É neste momento certo que me abro ao pecado e me permito mais uma vez transbordar o aconselhável. Aí minha mão percorre o invisível caminho já traçado entre mim e a maçã. Apanho a maçã, lastro esperado, levo-a ao rosto, sinto-lhe o perfume e a textura de aspereza infinitamente sutil, o sublime do agradável. E como namorados, coloco-a contra as maçãs de meu rosto e lentamente arrasto-a para meus lábios, que num rompante de desejo transgride o aceitável numa relação de amor e se desdobra em violento canibalismo. Este é o instante em que meus dentes arrebentam o limite do desenho da maçã, estraçalham com suas linhas sinuosas, e também a maçã rompe o limiar de meu desenho e somos, num ato de natureza bíblica, um só corpo e um só espírito. E aos poucos, neste processo iconoclástico, a maçã e eu vamos nos deformando, nos mesclando, deixando no passado recente nossas figuras e nos redesenhando, até que um dos dois - neste caso a maçã - se definha e sede ao outro todos os seus contornos, todo seu corpo, suas linhas, o fino trato de seu conceito e desaparece após o intenso ato de amor. Então eu, vitorioso na batalha dos encantamentos, paixões e amores, alimentado de corpo e alma, sento, na poltrona herdada de minha avó, no outro canto da câmara, barroca.
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