segunda-feira, 13 de julho de 2009

Relicário

Algumas pessoas sentem bem em se apegar a coisas antigas, que cheiram a tempo acumulado e sebo do passado. Algumas pessoas se fazem agarrando às minúcias do cotidiano, juntando todas elas em enormes baús - tesouros embalsamados -, na esperança de enclausurar o esquecimento, mórbido, longe delas ao trancafiar as lembranças perto delas. Algumas pessoas sentem na poeira guardada de seus antepassados os rastros de vida que não deveriam ter se perdido: perfumes, salivas, suores, ideias - rarefeito corpo refeito. Algumas pessoas seguem à risca a ideia de que vieram do pó e ao pó retornaram e pensam poder levar consigo o amor perdido, o luto firmado, quando enchem de pó os bolsos de velhos paletós e recheiam as prateleiras de louças antiquadas, perdidas num lava-pés, ou numa sessão de chá há muito sepultados. Essas pessoas são casta parte de famílias antigas que renderam aos dias de hoje pessoas jovens. E são essas pessoas que fazem brilhar num panteão quase tão sagrado quanto as escrituras os títulos de nobreza autoconferidos aos vivos do passado. Assim, entre uma cristaleira, um jogo de chá, uma bacia de louça, uma compota de doces, garrafas para licores, para água, para outras bebidas finas, copinhos, xicaras pequenas, médias, grandes, imagens de reis, de rainhas, de santos, dorme uma foto do sobrinho querido morto na segunda guerra. Sobrinho, hoje tio-avó de nosso pai. E tudo isso amontoado na estante. E um parente desprecavido, empobrecido, entristecido e perdido na vida roga à tia, amada tia, nobilíssima tia que lhe permita vender um, quiçá dois dos joguinhos de louça da enorme prateleira de madeira-de-lei para salvaguardar-lhe a família e os filhos da desgraça. Mas não. Pois que relíquia é a sagrada presença do ausente, a encarnação da memória, a vida eterna daqueles que carregaram num corpo nobre uma alma ainda mais nobre, altivíssimos espíritos. Não mais que poucos dias se passam. E a tia, contumaz, registra a desgraça feita ao chegar em sua sala e ver que da estante altiva e soberba, das memórias cativas, estava pois destruída, completamente desfeita, em cacos, pó e poeira, e resto de madeira no chão. Houve dos cupins comerem toda a madeira e fazer ruir chão abaixo prateleira a prateleira, levando feito fumaça as lembranças e relíquias para desfazerem-se, uma a uma em pó, pois que dele vieram e para ele tornaram. E devedora dos vivos, aos quais deixou em desamparo, e devedora dos mortos que se apagaram, a tia, tia-avó, chorou na esperança de que lavasse diante dos vivos o pecado pelo arrependimento e pudesse diante dos mortos redimir-se ao tentar com suas lágrimas e o pó remoldelar seu passado. Nobre criatura, pobre criatura, uma vida de relíquias, uma vida de amargura.

Um comentário:

Analu Oliveira disse...

respostas dee comentarios repsondidos!