sábado, 14 de novembro de 2009

Ao amigo, um leve aceno

Pro meu amigo Gabriel,


O dia segue conforme a normalidade. O dia segue, com o sol posto no alto, e aqui em baixo nós vivendo. À porta de casa um jardim. Saio para ver como estão as flores, como cresce o mato intruso e o caminhar de animais muito pequenos, mas muito cheios de vida. À porta, não da casa, mas do jardim, a presença de um amigo, sempre bem vindo. O convite acontece naturalmente. O caminho do portão de ferro, portão baixo, até à cozinha se faz curto e prazeiroso, embora dure inúmeros passos. Mas assim é a amizade, faz curta toda estadia por mais longa que seja e ao mesmo tempo alonga o prazer, por mais efêmero que seja o encontro. O tempo passa diferente, ora dá saltos, alegre e comovido, ora se deita, faz-se espera. Esse tempo se move conforme o assunto, conforme a troca de olhares e sorrisos, ou conforme o furor das desavenças, mas sempre termina como um tempo conciliador.


A cozinha, receptiva, oferece o cheiro do café como um afago a mais. Apesar de sentarmo-nos na grande mesa, com café posto, bolo, rosquinhas e todos os mimos próprios da cozinha mineira, sei que ele, meu amigo, não gosta de café. Sirvo-lhe então um chá, um chá feito de erva cidreira, nascida em minha horta. Como é doce o sabor da erva cidreira, ainda mais com uma pitadinha de açúcar. Trocamos algumas palavrinhas sobre o tempo, sobre o sol ardido e sobre o recompensador alívio que nos traz a brisa que ora passa, vaidosa de si. Ele me diz estar tranquilo. Ele me diz estar feliz, ele me faz ver seu olho brilhar. Eu lhe digo meus sonhos, lhe ofereço minhas promessas para o futuro como fino chocolate que se compartilha apenas com alguém muito especial. Enquanto como um pedaço de bolo ele agarra uma rosquinha e a observa, contempla, sente o perfume do amendoim e a coloca na boca. Começamos a conversar sobre amizade.


A tarde passa sorrateira por debaixo de nossos pés. Aos poucos nos damos conta de que a luz do sol fugiu pela soleira da porta. Estamos quase num breu. Já não enxergamos mais que um palmo diante de nosso nariz, mas nosso olhar ainda brilha e ilumina um pouco o ambiente. Acendo a luz. Ele reclama. Apago a luz. Acendo algumas velas e coloco sobre a mesa. É agradável ver queimar a vela. Eu lhe pergunto qual o limite para um amor de amigo. No que ele me responde não saber. Eu lhe pergunto se na vida a gente sempre sabe se o que sentimos é apenas amizade ou trata-se de desejo? Ele olha para os lados querendo encontrar a resposta pendurada em algum canto da cozinha. Não a encontra certamente. Me olha. Eu digo que lhe amo e que amor de amigo é um amor muito forte. No que ele me olha e diz que pensa que é um amor que não acaba. Concordamos. Já não temos mais rosquinhas, e o bolo apenas a metade. A noite chegou. Ofereço-lhe uma sopa, ainda por fazer. Ele gosta da ideia. Eu me levanto, peço licensa para fazer luz. Ele brinca, faz um truque de mágica. Rouba a chama da vela, deixa-nos no escuro, mas logo devolve a chama à vela. Eu me impressiono, ele afirma ser um truque simples. E devolve-me uma resposta, "claro, acenda a luz". A luz enche o ambiente. Eu me dirijo ao fogão, antes passo pelo armário e reuno os ingredientes. Encho de água o caldeirão. Ele me diz que tem muitos anseios. Que quer ser alguém, alguém reconhecido. Que quer ser artista. Eu lhe mostro que ele já é artista. Temos tantos medos. Nos sentamos muitas vezes, cansados de não-sabemos-o-quê, e vimos chegar a nós todos esses medos. Eles vêm rastejando pelo chão, pela parede e entram em nós pelos poros dos pés e nos alcançam o coração. A água fervilhando, os legumes, o macarrão, tudo pede um pouquinho mais de tempero. Eu sugiro abrirmos um vinho. Há certas ocasiões que pedem um bom vinho. A noite, cheia de amizade e carícias é uma. Conversas existensiosas são outras boas oportunidades para o bom vinho. Ele aceita a proposta de pronto. Ainda abre um sorriso. Peço-lhe para pegar a garrafa na sala. No que ele volta com a garrafa já tenho em mãos um bom saca-rolhas, herança de família, herança de meu avô. A melhor herança que poderia ter recebido, já me proporcionou muitos bons brindes, em ocasiões muito especiais. Esse saca-rolhas tira do fundo de meu destino momentos sempre mágicos, boas conversas, boas lembranças, bons amores, comemorações.


O tinir de taças. O brinde à nossa amizade é certeiro. A sopa quase pronta. Vou ao fogão, mexo mais um pouco. E retorno ao assunto, o que pode, ou antes o que não pode um amigo? Há limites? A resposta, meio amarrada, meio insegura, é de que há limites, impostos por essa mesma amizade. Cada amizade tem um tamanho, tem uma largura, e cabe somente aos amigos definirem quão largo é esse espaço. Acho bonita a resposta. E fico pensando nela. Tomo um gole do vinho. Pego uma cumbuca de louça e encho de sopa. Dou-lhe a cumbuca e encho outra para mim. Ele toma primeiro e elogia o tempeiro. Elogia ainda o calor da sopa. Calor de mãe, calor de abraço da pessoa amada, diz ele. Digo ser calor de gente. Realmente, a sopa desce quente, quebrando o gelo que pudesse ter dentro de nós. Ele me pede uma música. Gosto da ideia, mas a escolha é sempre difícil. Ele pede para não colocar música com canto, diz que a música com canto é sublime, uma vez que se ouve uma voz, não se satisfaz apenas com música instrumental. Eu concordo e saio em busca da surpresa. Chego com um disco de vinil, mas logo atento ao fato de que na cozinha não há vitrola. Teminamos a sopa. Passamos à sala.


Acendo apenas os abajures. Deixo a sala à meia luz, mais aconchegante. Ele se joga no sofá, eu me ajeito na poltrona. Dois cobertores, um para cada. A gente se cobre, se envolve. A música, sonatas de mozart. Entre as sutilezas de um tempo passado e o sabor de um bom vinho a conversa se desenrola. Ele me confessa problemas amorosos. Faço um silêncio cúmplice, espero e penso. Respondo-lhe também com confissões amorosas. A cumplicidade dá à amizade um ar de celestial, torna-a um encantamento. Fazemos um voto de confiança, conjuramos um sortilégio com nosso carinho. Amarramos assim nossas histórias. Encho as taças um pouco mais. Proponho mais um brinde. Brindamos ao tempo que passa, e ao fazer do vinho mais velho, faz também dele mais saboroso.


A noite, agora madrugada, aumenta o silêncio. Ele me olha e pergunta se eu tenho medo da solidão. Eu lhe respondo que para mim a solidão é uma grande prisão em que encontramo-nos dentro de nós mesmos, sem o direito de sair e poder falar, comunicar, tocar outros. É a pior das prisões. Temos o direito de ir e vir, enquanto corpos, mas nossa alma está impedida de se encontrar com as almas de outras pessoas. É ser seco, diz ele. Eu engulo em seco e concordo. O tempo continua a passar, assim como os assuntos. Até que caimos os dois adormecidos. Acordamos com o vento da manhã batendo nas portas e janelas. Um sopro nas pálpebras e o sono sai fugido. Acordamos. Penso no café. Miro no olhar desse meu amigo, ele me devolve um sorriso. Levanto-me, passo-lhe a mão pelos cabelos, retiro-a de leve e dirijo-me à cozinha.


Lá preparo o meu café. Preparo-lhe um suco de frutas naturais, como ele gosta. Ele me diz que amor de amigo é expansivo. Eu lhe digo que amor de amigo é gota de orvalho, brilha, alimenta e refresca. Tomo meu café. Ele seu suco. Comemos um pão caseiro com manteiga. Nos elogiamos. Atravessamos da cozinha ao portão de ferro, como se fosse uma eternidade. O tempo entre amigos passa lento nas despedidas, a amizade distende a alma, alarga o tempo. No portão, um abraço forte e certo. Ele segue a rua. Meu olhar e meu sorriso seguem para o jardim, uma carícia a mais.


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