Boa noite, caro leitor,
O ventilador chora nos meus ouvidos. A coberta implora perdão. O calor é cruel. A cerveja desce gelada, é puro prazer. Em toda noite vejo o dia, em todo dia a noite. Por que não o presente? Embalo minha história em notícias, faço de mim jornal, quero ser divulgado, quero me perder na boca do povo, quero ser declamado feito poema, reclamado feito problema, apenas não quero passar em branco, feito papel desprezado. Sou carente e passo parte da minha vida a apontar lápis. Faço isso para ter tempo de pensar, de refletir e escolher o que dizer. No final do dia, quando o dia é noite. Simplesmente não penso, tampouco digo. Com o lápis afiado risco o papel, rabisco feito criança, arranho a pele, furo o pulso de minha cabeça e deixo escorrer em palavras o que até então fiz pensar. Sou um susto, sou um fato. Me mato em discurso na noite, enforcado numa frase longa e apertada, apenas para que possa ser livre no dia seguinte. Mas qual não é minha surpresa ao ver chegar no dia seguinte pela manhã, feito cilada, feito políca, uma milíca armada de sílabas, pontuações, sentidos, palavras e invadir minha cabeça perversa, colocando-me refém de mim mesmo. No momento de desespero, seguro firme o estilete enferrujado e aponto mais um lápis e assim escrevo impertinente, certo de que gastarei tudo que tenho à mente. Demente. Demente:
Cocota - Entro no ônibus cheio. Exatamente treze minutos para as vinte e três horas. Avenida Augusto de Lima, a carótida sexual da cidade de Belo Horizonte. Ali a vida noturna transborda. Encontro-me no meio de estudantes, trabalhadores, homens, mulheres, nenhuma criança e ela. Uma senhora, morena (entenda, morena não é negra). Em torno de seus cinquenta anos. Peitos fartos, assim como o decote que não cobre nada. Calça jeans apertada. A sandália: plataforma na frente, salto agulha atrás. No pescoço um lenço colorido. Na cabeça uma fita preta. Nos lábios um batom vermelho muito forte. Nas unhas um esmalte vermelho tão forte como o batom. Sombra azul escuro, perfume barato, um par de brincos dourados cavalo-marinho. Essa dama desfila um sorriso e um charme. Atinge aos mais próximos, entorta os mais novos. Em algum lugar do passado, dela e nosso, viveu na rua, viveu na noite o suficiente para aprender a seduzir. A noite é fresca, mais agradável que o dia que é quente.
Bruxa - Tarde infernal. Alguém abriu os portões do inferno, se é que há por lá algum portão, e se é que já não o tivessem aberto antes. Importa-nos que está quente, muito quente. A respiração comprometida. O olhar lento, preguiçoso, se perde no jardim interno. O ataque: numa corrida frenética, num salto vertiginoso. Que abraço mais apertado. Ela, minha bailarina, minha dançarina, a menina que povoou meus desejos. Um beijo apertado, a saudade apertada. A vontade: romper com os limites do concreto e misturar uma alma noutra. Impossível, o que deus criou o homem não desmancha. O batom reflete meu sorriso. O estalar dos lábios é a lembraça do que ora brilhou e hoje é fosco.
Boneca - Avenida Dom Pedro Segundo. Noite. Sete minutos para as vinte e três horas. A noite fresca me faz carinho. Na cara recorto um sorriso. Ouço música em meu mp3, música pop. A cada esquina mais prostitutas. Conto seis, conto dez, conto doze e paro. Brinco com números e esboço passos de dança num ônibus cheio. Alguém brinca com os corpos expostos. Brinquem comigo, mas não brinquem com meu brinquedo.
Minha avó, a louca, disse: "a vida, ah!, a vida é feito jornal, se a gente joga ele na rua ele fica". Minha madrinha, morta há alguns anos, dizia quando repetíamos muito alguma coisa, "é cocota, bruxa, boneca". Meu professor de piano repete insistentemente que "o dedo aponta para a lua, o tolo olha para o dedo, o sábio olha para a lua". Lukács diz que somos "um ser entre alternativas". Aqui em casa, abro uma cerveja, já são vinte e três horas prontas. Enquanto isso deixo que atravesse a retina da minha memória a lembrança das mulheres que se foram no dia que passou. Colo por sobre a imagem dessas mulheres meus pensamentos e idéias. E vejo que enquanto passa o tempo, tudo é paixão. Quando ele pára é amor. O tempo passa discreto, sem que percebamos. As paixões, as licões, fazemos nós, feito uma colcha de retalho que não acaba nunca. Tecemos nossa vida como a Penélope grega, no que tecemos desfazemos, e no desfeito refazemos, talvez a nós, nessa roda interminável, caiba apenas escolher com sensatez, ser jornal, ser cocota, bruxa, boneca, lua, dedo, tolo ou sábio e assim termos nosso próprio rendado. Rendado este que uns vestem e outros escondem.
2 comentários:
eu sou a bruxa, definitivamente.
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